Friday, February 23, 2024

Mutirão e assombração

No dia 22 de abril de 1936 fomos trabalhar num mutirão na casa de Joaquim Jeremias, na fazenda Boa Sorte. Os encarregados foram Paulo e José Pequeno. Estive muitíssimo bem. O serviço foi feito com 15 homens. À noite, houve uma aposta de ver quem ia à casa da fazenda do Caldeirão, mal afamada de assombração, e de lá trazer umas folhas de cajazeira. Um foi e não trouxe. Outra aposta para ver quem ia à mesma casa e lá abrir uma porta da casa de farinha e por ela entrar no escuro  e passar por toda a casa e ir  à varanda e lá procurar uma mesa e desta tirar uma gaveta e trazer para a Boa Sorte, onde esperado por mais de 20 pessoas. Um rapaz disse que se pagassem a ele que ia e a gaveta trazia. Todos duvidaram e apostaram 5#000 réis para o tal ir e trazer. O caso da aposta foi que na casa tinha morrido um velho há muitos dias e na tal casa ninguém tinha coragem de ir de noite, por isso fizeram a aposta. A casa é muito velha e muito grande e já nela morreu muita gente e lá está para ser derrubada. O tal disse que ia e dissemos “pois vá que é garantido os 5# se trouxer a gaveta”. A noite era de escuro e chuva. Ele foi e quando veio foi com a tal gaveta. Foi uma grande ganzarra de todos que ali estavam. O tal ganhou os 5# e ofereceu a quem quisesse ir à casa velha do Caldeirão e levasse a gaveta e botasse a onde estava. Ninguém quis ir. Eu por minha vez gosto muito de dinheiro mas porém assim não o quero ganhar, pois tenho muito receio da tal casa velha do Caldeirão. Só mesmo quem não tem pena de si e não importa com as almas de quem já morreu. 


Registro feito por Francisco Lisboa Oliveira encontrado e transcrito por seu sobrinho-neto Pedro Juarez Oliveira Pinheiro, com adaptações de Franklin Carvalho.

Sunday, December 03, 2023

A montanha mágica

"Naphta pretendia manter a humanidade na sua atitude irracional diante dos fatos biológicos. Persistia naquela fase de religião primitiva, para a qual a morte representava um papa-gente, rodeado de tão misterioso terror que era impossível dirigir sobre ele o claro olhar da razão. Que barbárie! O espanto em face da morte remontava a épocas de um nível cultural extremamente baixo, nas quais a morte violenta fora a regra, e o cunho horripilante que a revestia por muito tempo se associara, no sentimento do homem, à idéia da morte em geral. Graças ao desenvolvimento da higiene e da consolidação da segurança pessoal, porém, a morte natural tornava-se comum, e ao trabalhador moderno a visão do repouso eterno, após o esgotamento normal das suas forças, absolutamente não se afigurava medonho, senão esperado e desejável. Não, a morte nada tinha de fantasma nem de mistério; era, sim, fenômeno inequívoco, racional, fisiologicamente necessário e simpático. Perder um tempo excessivo com a sua contemplação seria roubar à vida o que lhe cabe. Por isso tencionava-se combinar com aquele crematório modelo e o columbário [ossuário], que era o "recinto da morte", um "recinto da vida", no qual se aliariam a arquitetura, a pintura, a escultura, a música e a poesia, no sentido de afastar o espírito dos sobreviventes do espetáculo da morte, do luto obtuso e da lamentação inativa para os bens que a vida oferecia..." (Pg. 609)


"Que eles lançassem um olhar aos museus e às câmaras de tortura. Isso bastava para perceber que aqueles métodos de beliscar, esticar, tostar e apertar com parafusos, manifestamente haviam brotado de uma imaginação pueril e obcecada, do desejo de imitar piedosamente o que acontecia nos lugares do castigo eterno, lá no Além." (Sobre a Inquisição, pgs 611 e 612)


"Com efeito, a nossa morte é assunto dos sobreviventes, mais do que de nós próprios. Quer a conheçamos, quer não, conserva pleno valor para a alma aquela sentença de um sábio espirituoso que reza: enquanto existimos, não existe a morte, e quando ela existe, nós já deixamos de existir; por conseguinte, não há, entre nós e a morte, nenhuma relação real, e ela é uma coisa que para nós absolutamente não tem interesse e que, quando muito, afeta ao mundo e à natureza; motivo por que todas as criaturas a contemplam com grande calma, com indiferença, com certa ingenuidade egoísta, e sem assumir responsabilidades."(Pg.708)


"Eu conheço a morte, sou um dos seus velhos empregados. Creia-me, em geral a gente a receia demais. Posso afirmar-lhe que é quase insignificante. Pois aquela trabalheira que às vezes a precede não pode ser considerada como parte dela; é o que há de mais vivo, e pode conduzir à vida e à saúde. Mas ninguém que voltasse da morte seria capaz de lhe contar coisas interessantes a seu respeito, uma vez que ela não se percebe. Saímos das trevas e entramos nas trevas. Entre elas há experiências, mas o começo e o fim, o nascimento e a morte não são coisas que notamos, não têm caráter subjetivo; como processos pertencem inteiramente à esfera do objetivo. Assim é a coisa..." (Pg.715)


"…Hans Castorp demonstrou-lhe que existem olhares cuja clareza inequívoca nada fica devendo às palavras mais nitidamente articuladas. "Miserável!", dizia o olhar com que mediu de alto a baixo o homem de Mannheim; dizia-o, excluindo qualquer interpretação levissimamente ambígua, e Wehsal compreendeu esse olhar, engoliu-o e até o aprovou, meneando a cabeça e exibindo os dentes cariados." (Pg. 739)


"- Mas lhe asseguro que ele pode falar de modo bem coerente, quando se anima - disse Hans Castorp. - Certa vez me falou do dinamismo das drogas e de árvores venenosas da Ásia; contou fatos tão interessantes que quase me causou uma impressão sinistra. O interessante sempre é um pouco sinistro. E tudo aquilo era menos interessante em si, do que em relação com o efeito produzido pela sua personalidade, que tornava as palavras ao mesmo tempo sinistras e interessantes…" (pg. 782)


"O homem é divino, desde que sente. É o sentimento de Deus. Deus o criou para sentir por intermédio dele. O homem é apenas o órgão por meio do qual Deus realiza o seu enlace com a vida despertada e ébria. O homem que fracassasse quanto ao sentimento, aviltaria a Deus, seria a causa da derrota da força viril de Deus, a causa de uma catástrofe cósmica, de um horror inimaginável... - Tornou a beber." Pgs. 807 e 808)


"Mas a volta de defuntos, isto é, a desejabilidade de tal volta nunca deixa de ser coisa problemática e delicada. Em última análise, e falando com franqueza, essa desejabilidade não existe; é uma ilusão; à luz do dia, é tão impossível como a própria coisa, o que se tornaria evidente se a natureza, num caso particular, abolisse esta impossibilidade. O que chamamos "luto" talvez não seja a dor que nos inflige a impossibilidade de ver os nossos mortos voltarem à vida, senão a outra que experimentamos diante do fato de sermos incapazes de desejar tal coisa." (Pg. 904)



"Com efeito, qualquer pessoa que soubesse pensar logicamente seria levada a experiências curiosas e a resultados divertidos com esse dogma do espaço e do tempo infinitos e reais; obteria precisamente o resultado: nada. Perceberia que o tal realismo era genuíno niilismo. Por quê? Pela simples razão de a relação entre qualquer grandeza e o infinito ser zero. No infinito não existia medida, e na eternidade não havia nem duração nem modificação. No espaço infinito onde todas as distâncias seriam matematicamente iguais a zero, não era possível conceber nem sequer dois pontos situados um ao lado do outro, e ainda menos dois corpos, para não falar de um movimento. Ele, Naphta, fazia questão de constatar isso, para contrariar o atrevimento com que a ciência materialista apresentava os disparates astronômicos e o seu palavrório frívolo acerca do universo como se fossem conhecimentos absolutos. Coitada da humanidade que, em face de uma exposição ostensiva de cifras vazias, deixou que lhe impingissem o sentimento da sua própria nulidade e admitiu que a privassem do sentido patético da sua importância! Talvez fosse ainda tolerável que a razão e o conhecimento humanos se mantivessem dentro da esfera terrena e nesse terreno tratassem como reais as suas experiências na exploração do objetivo e do subjetivo. Mas quando ultrapassassem esses limites e estendessem a mão para o enigma eterno, dedicando-se à chamada cosmologia ou cosmogonia, levariam a brincadeira um pouco longe, e a sua presunção chegaria ao cúmulo do grotesco. Que absurdo blasfemo querer calcular a "distância" entre um astro e a Terra em trilhões de quilômetros ou também em anos-luz e imaginar que por meio dessas mentiras matemáticas se pudesse abrir ao espírito humano a vista para o infinito e o terreno, quando, em realidade, o infinito nada, absolutamente nada tinha que ver com grandezas, e a eternidade nada com a duração e com os lapsos de tempo. Pelo contrário, o infinito e a eternidade, longe de serem conceitos da ciência natural, representavam justamente a abolição daquilo que chamamos natureza." (Pg. 915-916)


"Atiram-se de bruços, para esquivar-se aos projéteis que se aproximam ululando. Novamente se levantam, avançam às pressas, encorajando-se com estridentes brados juvenis, cada vez que escapam ilesos. São alvejados, caem, agitando os braços, com um tiro na testa, no coração, nas entranhas. Jazem, com as faces na lama, imóveis já. Jazem, com as cabeças enterradas no barro, as costas despegadas da mochila, e agarram o ar com ambas as mãos. Mas o bosque envia outros que se atiram, que saltam, gritam ou avançam mudos, a passo trôpego, por entre os feridos. 

Ah, toda essa juventude, com suas mochilas e baioneta, com as capas e as botas enlameadas!" (Pg. 955)



Wednesday, November 29, 2023

A morte dos outros

A morte, esse muro opaco, é também um espelho que só mostra o que está entre nós e ela, nunca o que está por trás dela. De fato não somos obrigados a olhar este espelho indefinidamente, mas qualquer notícia de falecimento próximo impõe contemplá-lo. Quando isso acontece, é natural que nos vejamos enquadrados na sua moldura da mesma forma que a pessoa morta. Isso porque o homem é ser que vive coletivamente e, diante de um óbito, precisa refazer os parâmetros da sua própria identidade, uma identidade independente do ente que pereceu e independente também de tudo o que se desfaz com aquela perda. 


De fato, as primeiras perguntas diante da notícia de um falecimento são perguntas desesperadas de um ego ameaçado pelo seu próprio fim. Questões que latejam na consciência, reverberando um sentimento instintivo de autopreservação, no que pode ser definido como temor do contágio da morte. Tal temor, aliás, é muitas vezes revelado em diversas práticas culturais cujo objetivo é fazer com que a Morte, então visto como um personagem espectral, uma sombra assustadora, não atinja mais ninguém da família nem da vizinhança. Em muitos lugares tais práticas estão associadas mesmo aos rituais funerários que despacham, encomendam os falecidos a outro mundo, reforçando a imposição de que os mortos não retornem nem venham buscar os vivos, e de que estes, os que remanescem, sejam repatriados à sociedade. 


Apesar do abalo significativo em toda estrutura inconsciente da autopreservação, os vivos devem concentrar-se, organizar e participar de todas essas tarefas de ratificação da realidade, principalmente destes ritos funerários. Além disso, devem envolver-se nos processos de reestruturação material no que tange à herança, a sucessões, ao amparo e à subsistência familiar, que são também ações de negação do contágio, que são também expressões de sua própria permanência. 


Aqui não falamos do luto, carga afetiva que ainda vincula o vivo ao ser perdido, mas do efeito de um óbito sobre o instinto das pessoas remanescentes, projetando nestas uma ideia de risco ilimitado. Percebemos que essa grave noção de risco nem sempre se impõe por qualquer fato implicado naquele passamento, ou seja, a causa mortis de um homem, mas pela vastidão das armadilhas da morte e pela incompreensão da sua natureza enquanto fenômeno. A morte é única mas é variada, multiforme, multifacetada, e, em decorrência disso, imprevisível nos seus caprichos. E é o seu caráter indomesticável e ilimitado que constitui elemento agravante da fatalidade e da irreversibilidade que carrega. 


O ser humano antecipa involuntariamente a sua própria destruição ao tocar a morte do outro, como de regra acontece ante a notícia de qualquer experiência alheia. Antes de isso se dar por empatia, por ligame sentimental, ocorre pelo processo contínuo e infinito de construção de uma identidade que se faz em lances individuais e coletivos. Ao contrário de uma distinção ideal e simples entre vivos e mortos,os vivos fazem mentalmente todo o transcurso do falecimento. 


É nesse passo que, diante do espelho mudo, o vivo tenta construir mecanismos culturais de evitação, de limitação e de convívio mínimo com as imagens de morte, de negação, de uma amnésia instintiva, inclusive nos dias de luto, e de reelaboração da gente falecida num novo perfil vivo, numa forma de convívio atribuída unilateralmente. 


Ao mirar a morte, um espelho que nada lhe informa, o homem interpõe diversos elementos que disfarçam o vazio existente em ambos os lados dessa reflexão. Cria rituais, altares, neuroses, compensações, artes e outras estruturas que antes servem para diálogo consigo e com outros homens do que com aquilo que é inflexível e oco, e com aqueles que, já atrás do espelho, não dialogam.



Tuesday, July 12, 2022

Minibio

 FRANKLIN CARVALHO 

Jornalista e autor dos livros de contos “Câmara e Cadeia” (2004) e “O Encourado” (2009). Em 2016, o seu romance Céus e Terra (editora Record) venceu o Prêmio Nacional de Literatura do Serviço Social do Comércio (Sesc), e em 2017, o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Autor Estreante com mais de 40 anos. O autor participou da comitiva brasileira na Primavera Literária Brasileira e no Salão do Livro de Paris (2016), eventos realizados na capital francesa, e foi palestrante na Feira do Livro de Guadalajara (México - 2017) e na Festa Literária de Paraty 2018. Em 2019, ganhou o Prêmio Nacional de Literatura da Academia de Letras da Bahia com o livro de contos “A ordem interior do mundo” (editora 7 Letras). A obra ficou em segundo lugar no Prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional, em 2021. Também em 2021 lançou o seu mais novo romance “Eu, que não amo ninguém” (editora Reformatório). Tem contos publicados na Revista Gueto, na Ruído Manifesto e na Coleção Identidade, da Amazon. Escreve mensalmente crônicas para a revista “Muito”, do jornal “A Tarde”, de Salvador.

Sunday, July 03, 2022

Frases

 





Tudo é tempo. A areia na ampulheta, o fluxo,  o vidro e as tampas de madeira. Tudo passa do mesmo jeito.

 

Somos feitos de horas, e cada hora é breve e eterna. Não somos rostos no tempo, mas rostos do próprio tempo, ele pleno de contradições.
 

Um dia, eu e o meu inimigo estaremos mortos. Isso já será a suficiente justiça

 

E perdoai os nossos pecados,  assim como nós perdoamos

 

Para que o mundo funciona? Para que ele emprega e desemprega gente o tempo inteiro? Para quem?

Bhagavad Gita

 

“A Suprema Personalidade de Deus disse: Enquanto fala palavras sábias, você está se lamentando pelo que não precisa se afligir. Os sábios não se lamentam nem pelos vivos nem pelos mortos.

Nunca houve um tempo em que Eu não existisse, nem você, nem todos esses reis; e no futuro nenhum de nós deixará de existir.” (Krsna para Arjuna, no Bhagavad Gita, 11 e 12)

Três axiomas da morte

  1.  O contato com a morte é experiência existencial de insegurança dos limites do evento — Diante da perda de alguém sentimos degenerar nosso grau de relação com a realidade, porque o contato com a pessoa ora extinta era uma forma de mediação com o mundo, com a família, a cidade, a vizinhança etc. O fim de um conhecido é também o perecimento de uma fração das nossas vidas, e gera dúvidas sobre a continuidade de parte ou mesmo da totalidade da nossa existência.  
  2.  Toda experiência de morte circunscreve-se na vida e por ela é moldada e a ela está restrita, mesmo os túmulos, o além, crenças e teorias sobre o assunto — Os vivos podem sentir muitas vezes o falecimento de alguém, mas os mortos não morrem outras vezes, nem sofrem, nem dividem conosco as apreensões e inquietações pelo fenômeno da sua extinção. Suas circunstâncias são outras. Nós, os vivos, estamos solitários tentando criar ferramentas e ritos que nos faça ver um sentido para as coisas. 
  3. A ideia de morte é ferramenta de domínio, criação, regulação, cura etc também manipulada como estereótipo em diversas performances — Como as palavras enfileiradas até aqui (insegurança, dúvidas, apreensões e inquietações) remetem a mistério, é natural esperarmos que haja uma ampla condição de amedrontamento do homem comum diante daquilo e daquele que está familiarizado com a morte, como líderes religiosos, médicos e lideranças políticas capazes de manipular paranoias de aniquilação. Da mesma forma, medo de todas as lendas, mitos e imagens da morte.